domingo, 29 de agosto de 2010

“Ser ou não ser, eis a questão”.
Sérgio de Vasconcellos-Corrêa
Curioso o mundo da música.
Os que estão fora dele por certo hão de pensar que aqueles que a ela se dedicam, estão isentos de pensamentos mesquinhos, de atitudes de menosprezo, de soberba e outras tantas posturas não condizentes com o suposto grau de cultura e sensibilidade que ostentam e cultuam. Ledo engano. Os profissionais da música, como de resto todos os demais, nas mais diversas áreas do conhecimento humano, são antes de tudo seres com e sem talento, os quais um dia, por qualquer razão, se encaminharam ou foram encaminhados para exercer determinada função na sociedade.
Uma breve reflexão sobre o assunto permite de imediato, separar o joio do trigo, embora a contemporaneidade dificulte essa identificação. A constatação da verdadeira estatura de um indivíduo, não importa qual seja a sua área, só assume a verdadeira dimensão com o distanciamento no tempo. Os contemporâneos, com raríssimas exceções, estão por demais comprometidos com o momento presente, por conceitos, preceitos, preconceitos, invejas, ciumeiras etc... para poder julgar com isenção.
Van Gogh foi motivo de chacota até mesmo para os grandes pintores da sua época, ele mesmo não acreditando que seu talento fosse maior que o dos seus colegas, colocando-se sempre abaixo deles.
Bach, não foi levado sério – como compositor - nem pelos próprios filhos. Apenas os músicos realmente dignos desse título o respeitavam e admiravam. O mundo só tomou real conhecimento da sua obra perto de duzentos anos após a sua morte.
Exemplos semelhantes podem ser encontrados em qualquer atividade e em todas elas a dicotomia é uma constante. De um lado “os que fazem”, do outro os detratores e os incensadores, ambos acreditando ter a verdade a seu favor quando na realidade não passam de opinantes falíveis em suas apreciações por serem incapazes de realizar o mínimo daquilo que costumam criticar ou enaltecer. Aquele que realiza, por experiência própria sabe apreciar e respeitar - mesmo desgostando – as atuações dos outros, jamais emitindo publicamente juízos de valor, embora os tenha.
Muitas vezes somos apanhados de surpresa por manifestações de cabotinismo, principalmente por parte de atletas e artistas que aproveitam as lantejoulas lançadas por apreciadores dos seus dotes e passam ostentar posturas não condizentes com a sua própria maneira de ser.
Acompanhei atentamente as para-olimpíadas e procurei fixar-me muito mais nas reações dos participantes do que nas marcas por eles conquistadas. Pude perceber de modo claro a incontida alegria dos atletas, mesmo daqueles que não conseguiram o louro da vitória. Seus rostos demonstravam alegria. Era a demonstração “do puro prazer de participar”. A satisfação de poder fazer “o que mais gosta” e perceber emocionado o incentivo e o aplauso dos próprios adversários.
Entre os músicos, no entanto, o que se percebe é uma mal disfarçada condescendência, quando não permeada por ácidas críticas, condenatórias, destinadas a denegrir a imagem do artista que ousa se apresentar sem as condições ideais ao exercício da sua atividade. Foi no que aconteceu há pouco com o jogador Ronaldo("fenômenno"), taxado por grande parte dos comentaristas esportivos como acabado para o futebol devido à gordura e às contusões que sofreu. Essa atitude se repete agora quando das aparições do pianista João Carlos Martins em programas de televisão, ou mesmo em concertos, nos quais atua como regente e não deixa escapar a oportunidade de tocar o seu piano, ou seja, fazer "o que mais gosta de fazer". Esquecem-se os detratores que, tanto um como outro, mesmo sem as condições ideais, ainda são muito melhores do que a grande maioria daqueles que os criticam.
Semana passada, em concerto realizado na “Sala São Paulo”, com transmissão direta pela TV Cultu-ra, foi-nos dado presenciar atuações do maestro e pianista João Carlos Martins, o qual após dirigir a sua orquestra “ousou” tocar os movimentos lentos dos concertos em ré menor de Mozart e nº 2 de Rachmaninoff. Confesso que fiquei temeroso, no entanto, o que se ouviu não foi uma execução pianística, mas um extraordinário exemplo de superação e uma inesquecível aula de interpretação, daí o título deste comentário, tomado de empréstimo a William Shakespeare, “Ser ou não ser, eis a questão” que poderíamos atualizar dizendo: “Quem sabe faz, quem não sabe critica”.

Um comentário:

  1. Excelente, Professor !...exímio texto, com o qual corroboro em sua totalidade...

    O homem se aprumou na técnica e na exatidão das coisas, e perdeu-se no mais importante : a emoção das coisas !

    grande abraço, caro professor !

    João Eduardo Canônico

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